[Arte de Dani Manzini]
Em acordo com o autor, posto neste blog a tradução (de minha autoria) do artigo de Christian Laval intitulado “De l’Université néolibérale à l’Université comme commun”, publicado em La Deleuziana – Révue en ligne de Philosophie – ISSN 2421-3098 – n. 13/2021 – L’État des Institutions et les Institutions de l’État.
A publicação deste artigo, em português, faz-se necessária e urgente como um aporte essencial para os estudos do processo de transformação da educação superior no Brasil em que os princípios e diretrizes do neoliberalismo se fazem a cada dia mais presentes.
19 de janeiro de 2023
Valdemar Sguissardi
https://vsguissardi.com.br
Da universidade neoliberal à universidade como comum
Christian Laval*
Resumo
A comunidade acadêmica levou algum tempo para dar-se conta de uma mudança histórica que afeta a educação superior em diferentes ritmos e formas, a depender de sua estrutura e do país. Agora ficou bastante claro que um novo modelo de universidade começou a se estruturar. Quer a chamemos de universidade “empreendedora”, “gerencial” ou “neoliberal”; quer falemos de “capitalismo acadêmico” ou “universidade capitalista”, ou ainda de “mercado de educação superior globalizado”, todos esses conceitos designam uma mudança que põe em questão não apenas os modos de organização ou “governança” da educação superior, mas sua definição, seus objetivos, suas funções sociais, culturais e políticas. O etos profissional dos professores-pesquisadores, a relação com os estudos e o conhecimento dos alunos e a própria concepção de conhecimento são afetados por ele.
Se cabe às ciências sociais produzir a análise mais precisa dessas transformações e suas motivações, cabe a elas também abrir o debate sobre modelos alternativos ao neoliberalismo das universidades.
À luz da história das universidades, o que poderia ser uma “universidade comum” associando o princípio do autogoverno da atividade universitária e o uso coletivo dos recursos do conhecimento? Mais concretamente, como articular, numa instituição refundada, dimensões e princípios diferentes, mas todos necessários, como a colegialidade democrática, a liberdade acadêmica de pesquisa e ensino, o acesso aberto e universal dos cidadãos ao serviço público do conhecimento, o propósito emancipatório da educação e a equalização das condições de estudo?
Tantas questões que, em última análise, remetem a uma questão muito maior: até que ponto a educação superior pode ainda ser um espaço de resistência ou mesmo uma alavanca para a transformação da sociedade?
Abstract
It took some time for the academic community to take the measure of a historical change that affects higher education at different rates and in different ways depending on the country and the structure. It has now become quite clear that a new university model has begun to unfold. Whether we call it “entrepreneurial”, “managerial” or “neoliberal” university, whether we speak of “academic capitalism” or “capitalist university”, or even of “globalized market of higher education”, all of these concepts designate a change that calls into question not only the modes of organization or “governance” of higher education, but its definition, its aims, its social, cultural and political functions. The professional ethos of teacher-researchers, the relationship to studies and knowledge of students and the very conception of knowledge are affected by it.
If it is up to the social sciences to produce the most precise analysis of these transformations and their motivations, it is also up to them to open up the question of alternative models to the neoliberalism of universities.
In the light of the history of universities, what could be a “university common” associating the principle of self-government of university activity and the collective use of knowledge resources? More concretely, how to articulate, in a refounded institution, different but all necessary dimensions and principles such as democratic collegiality, academic freedom of research and teaching, open and universal access for citizens to the public service of knowledge, the emancipatory purpose of education and the equalization of study conditions?
So many questions which, ultimately, refer to a much larger question: to what extent can higher education still be a space of resistance, or even a lever for the transformation of society?
Introdução
O que ocorre, hoje, é como se a sociedade neoliberal não precisasse mais da universidade como lugar da ciência, do conhecimento racional, da verdade. O que se buscaria é uma universidade transformada em engrenagem da máquina produtiva e comercial, como visto em algumas tendências globais. Essa transformação progressiva afeta profundamente o significado histórico da universidade, ou seja, a produção de conhecimento validado por mecanismos institucionais de verdade. O neoliberalismo é um modo de governo dos indivíduos pelo mercado, mas também um “regime de verdade”, que obriga a certos atos e a certos “procedimentos para a manifestação da verdade”. Ora, o regime neoliberal de verdade que, gradualmente, se impõe à universidade, como alhures, é a validação pelo mercado. É verdade, legitimamente verdade, o que é economicamente eficaz. Disto decorre uma gradual desvalorização da universidade clássica como lugar do conhecimento racional. O emprego passa a ser a finalidade exclusiva do que ali é ensinado, assim como o “valor econômico” torna-se a finalidade da pesquisa. “Para e pelo mercado”, tal poderia ser o lema da universidade neoliberal. Se este novo regime de verdade começa a afetar profundamente as atividades de ensino e pesquisa, a tomada de consciência da gravidade desta mutação tem sido bastante lenta. Há de se convir que os profissionais acadêmicos nem sempre são os mais interessados nas transformações de seu próprio campo profissional. Uma questão, portanto, se põe: por que, uma vez sentidas e mais ou menos conhecidas pelos académicos as consequências pessoais e coletivas da implantação da universidade neoliberal, as resistências a essas têm sido, ao menos até agora, tão fracas? Por que tão pouca resistência do meio universitário?
Há pelo menos cinco razões básicas. A primeira deve-se às disparidades nacionais dos sistemas de ensino. Elas têm podido impedir o entendimento de que estávamos diante da constituição de um modelo global que se impunha por passos sucessivos, em ritmos e modos variáveis segundo cada país.
A segunda deve-se às divisões internas do campo universitário. As mutações de que estamos falando afetam, de maneiras muito diferentes, os membros da comunidade acadêmica. O campo universitário é atravessado por um conflito, em múltiplas frentes, que perpassa as disciplinas de forma desigual e divide os estudiosos em grupos com interesses diferentes. Há um outro princípio de divisão, talvez ainda mais poderoso, que separa os professores-pesquisadores de alto nível e a massa cada vez mais considerável dos “excluídos de dentro”, temporários e precários do ensino e da pesquisa, especialmente mais explorados e dominados, entre muitos dos quais a instituição mantém a esperança de uma futura contratação pela Alma Mater.
A terceira razão deve-se a que as reformas de tipo neoliberal impõem-se não por adesão ideológica, mas por uma espécie de chantagem ao princípio da realidade. “Nós não temos escolha” é a fórmula mais típica dos novos gestores da universidade. Em outras palavras, o “jogo da competição”, que se impõe a todos, exige resignação de cada um, adaptação e conformismo generalizado.
A quarta razão é consequência da anterior. A instauração desse regime de competição leva à prevalência de critérios gerenciais sobre as atividades-fim intelectuais e pedagógicas da universidade. Essa “suave” violência gerencial individualiza os interesses, culpabiliza quem não se sente à altura desses critérios, isola aqueles que ousam a eles resistir e que, às vezes, passam por traidores ou sabotadores da “reforma necessária” (de Gaulejac 2013: 12).
A quinta razão, que nos ocupará mais particularmente aqui, deve-se ao fato de que o resistência precisa tanto da compreensão do modelo universitário neoliberal quanto de um contra-modelo. De fato, não basta fazer uma análise crítica do novo modelo, se, ao mesmo tempo, não se puder opor-lhe pelo menos um modelo alternativo. Pois, é sobre este último ponto que podemos intervir politicamente no campo universitário.
Proponho aqui uma contraposição entre o tipo ideal da universidade neoliberal e o da universidade como comum. A dita abordagem “ideal-típica”, como construção de uma “imagem intelectual”, não pressupõe a realização empírica perfeita e total de um modelo. Ela visa a sintetizar tendências e aspectos da realidade e a antecipar os resultados dos processos em curso visando capturar uma consistência de conjunto. Ela permite comparar situações nacionais e medir as diferenças entre o modelo construído e as realidades. Mas, e é isso que às vezes é esquecido, ela permite contrastar modelos típicos-ideais. Na verdade, nada nos impede de construir uma imagem alternativa do que deve ser, uma vez assumido obviamente o fato de que as ciências sociais, apoiando-se em dados do passado, em realidades ainda vivas e em práticas atuais, são capazes de traçar normativamente uma imagem alternativa da realidade futura.
O tipo ideal da universidade neoliberal
Ainda que guardando suas diferenças ligadas à própria história nacional, as universidades em todo o mundo estão gradualmente entrando em uma nova era. Que se denomine de “universidade empresarial”, “gerencial” ou “neoliberal”, que se fale de “capitalismo acadêmico” ou de “universidade capitalista”, ou ainda de “mercado globalizado de ensino superior”, todos estes conceitos designam uma mudança que põe em questão não apenas os modos de organização ou “governança” do ensino superior, mas também suas finalidades e suas funções sociais, culturais e políticas. Falaremos aqui de “universidade neoliberal” para designar esse novo modelo histórico de universidade que vem sucedendo a outros grandes modelos históricos de universidade: a universidade medieval, a universidade humboldtiana do século XIX, a universidade de massa norte-americana (ou modelo de multiversidade, segundo Clark Kerr) do século XX. A partir deste modelo global com múltiplas variantes nacionais e locais, convém indicar seus principais traços distintivos na forma de um tipo-ideal do qual, obviamente, não encontramos em todos os lugares exatamente as mesmas características e os mesmos aspectos considerando-se a diferença na velocidade de difusão do modelo e das estruturas universitárias nacionais.
O ensino superior e a pesquisa são reconstruídos como “mercados” institucionais em todos os níveis. A nova regulação do sistema universitário e a ideologia que os acompanham fundam-se no primado absoluto da competição e da obrigação de performance neste mercado. O modelo de competição tende a impor-se a todos e a todos os níveis com novas regras de funcionamento e financiamento do campo do saber, regras que influenciam o compormento de todos os atores.
Esta universidade neoliberal não visa à igualdade entre unidades e estruturas que a compõem, mas sua diferenciação e sua desigualdade. Um dos principais efeitos buscados é a divergência de trajetórias e funções das universidades que levem a uma crescente desigualdade no campo universitário. O capital científico está concentrado em universidades de referência com vocação internacional e unidades de prestígio ditas de excelência. Há uma dissociação entre alguns poucos centros de excelência de classe mundial e instituições com função profissionalizante, especializados em cursos mais curtos, destinados a públicos “mais populares”. O discurso oficial quer que a desigualdade entre instituições e entre formações seja a um tempo inevitável e desejável em face da concorrência global que obrigaria a concentrar recursos nos “melhores” em nome de uma lógica de excelência e performance.
Para se adaptarem à situação de mercado, impõe-se às instituições que se transformem em “empresas acadêmicas” com maior autonomia estratégica e financeira, administradas por gerentes cujas qualidades exigidas sejam as da eficiência mercantil. O modelo neoliberal de universidade não é apenas um modelo totalmente mercantil, mesmo que um setor de educação privada tenda a se desenvolver em detrimento da educação pública; trata-se de um sistema burocrático-competitivo ou, se se preferir, empreendedor. Paralelamente aos fenômenos da mercantilização genuína, especialmente por meio do aumento de mensalidades, trata-se de uma gerencialização da universidade, de tal forma que a neoliberalização do ensino superior não corresponde apenas a uma expansão do setor privado de ensino superior, mas também a uma profunda transformação do setor acadêmico público.
Isso resulta numa polarização interna ao mundo dos acadêmicos, entre aqueles que estão próximos do polo gerencial e os que estão mais próximos “do campo” da pesquisa e do ensino, de acordo com uma divisão encontrada em todas as profissões fortemente burocratizadas. A nova gestão universitária confronta a representação colegial da universidade, substituindo a concepção de um órgão autônomo pela concepção empreendedora de pessoal dirigido por um gestor preocupado com a performance. A universidade então se parece cada vez mais com um empresa com sua elite acadêmica na linha de frente do “front da competição” e com seus funcionários subalternos a quem são impostas regras e “processos“ de trabalho considerados mais eficazes na competição.
Parecendo-se cada vez mais com uma empresa, um player estratégico em um grande mercado nacional ou internacional, a universidade abandona suas dimensões mais democráticas. O processo de “desdemocratização” da universidade manifesta-se em particular pelo aumento do poder dos reitores das universidades e pela instituição de instâncias ou níveis burocráticos em grande medida fora das regras estabelecidas da colegialidade.
O modelo da universidade neoliberal é inseparável de uma tomada de poder acadêmico por uma camada de gestores que impõe uma nova “governança” e um novo etos de trabalho acadêmico. Constitui-se dentro da universidade um poder gerencial cada vez mais autônomo, com interesses distintos dos dos docentes e pesquisadores. Assiste-se a uma centralização política da governança com gestores universitários tendo margem de manobra estratégica maior e gozando de maior autoridade hierárquica sobre o corpo docente e não docente. Este grupo dirigente, para assumir suas funções de gestão, absorve uma parte importante dos escassos recursos financeiros e humanos das instituições. Esta nova “nobreza acadêmica” lidera a transformação das universidades, disseminando e impondo padrões de competição e ferramentas de avaliação.
Como a competição leva ao estabelecimento de novas formas, mais exigentes, de racionalização do trabalho acadêmico, isto permite, aos docentes/pesquisadores mais próximos do mundo da economia e da gestão, beneficiarem-se de maior legitimidade vinculada às competências gerenciais que possuem em detrimento das competências académicas e científicas mais tradicionais. Em um contexto de declínio dos recursos públicos e aumento do financiamento privado, essas habilidades gerenciais parecem então ser decisivas na luta competitiva.
Acompanhando essas novas funções essenciais na corrida por financiamento, desenvolve-se uma verdadeira burocracia de avaliação e financiamento. Esta especialização burocrática, aliás muito cara e cronófaga, é tal que a busca por financiamento contratual tem tomado o lugar da pesquisa propriamente dita em muitas unidades de pesquisa. Este subsetor profissional dentro do campo acadêmico produz normas que visam reformular as práticas profissionais de acordo com os princípios gerenciais e de acordo com os procedimentos formais e padrões de especialização, definindo, por exemplo, categorias de julgamento que diferenciam pares estatutariamente equivalentes, ou que impõem definições legítimas do que é uma “boa pesquisa” ou uma “pesquisa de qualidade”. Assiste-se ao nascimento de um verdadeiro poder “ expertocrático”, na fronteira entre a pesquisa e a administração, que se impõe sobre os professores-pesquisadores.
Este modelo de universidade a serviço da Sociedade do Conhecimento impõe de forma muito prescritiva mudanças muito concretas nas missões e funções da universidade. A profissionalização dos estudos impõe uma porosidade cada vez maior das culturas, dos valores e lógicas próprias dos diferentes mundos profissionais, e especialmente no mundo dos negócios privados. A pesquisa, por seu lado, é cada vez mais porosa às expectativas dos patrocinadores privados e públicos dos quais depende a concessão de recursos às unidades de investigação. É a relação entre as universidades e os diferentes campos econômicos e políticos que é afetada, embora de forma diferente segundo as disciplinas.
“A economia do conhecimento”, discurso que justifica a universidade neoliberal, faz, exatamente, do conhecimento um bem econômico. O conhecimento é submetido à forma do valor pelos artefactos da quantificação próprios da avaliação, do benchmarking, da indexação e da bibliometria. Não se trata apenas de “mercantilização” no sentido restrito do termo. Os produtos do conhecimento são “valorizados” como se fossem mercadorias, mas sem serem sempre mercadorias reais. Técnicas de quantificação tornam possível criar sucedâneos de “valor econômico” a partir dos quais é possível atribuir um valor às unidades de pesquisa e aos produtores de conhecimento, ou seja, aos professores-pesquisadores. A avaliação quantitativa nada mais é do que uma produção de “valores de troca”, num mercado fictício, que funcionam como preços monetários no mercado de bens[1]. Um bom pesquisador, aquele que tem um grande “valor” nesse mercado, é aquele que tem um escore bibliométrico e de citações elevado. Ele tende a transformar-se subjetivamente em empreendedor forçado a administrar e aumentar seu capital bibliométrico e de citações desenvolvendo uma estratégia de publicação de “ paper’s”, aliás, antes artigos que livros. A performance bibliométrica e citacional torna-se mais importante do que a contribuição de novos conhecimentos, potencialmente degradando o própria qualidade da produção (Insel 2009: 117).
Acadêmicos e cientistas como produtores de “produtos cognitivos”» para um mercado editorial e de publicações são submetidos a controles e avaliações mais frequentes de sua produtividade. Sua atividade é duplamente disciplinada pela burocracia e pelo mercado, em especial pela criação de indicadores de desempenho. Essa cultura do monitoramento e da performance baseia-se na desconfiança acerca de indivíduos suspeitos de não terem outro motivo senão o de seus próprios interesses privados (teoria da Escolha pública).
A “direção” do sistema universitário e o governo do seu corpo docente estão intimamente ligados a esta forma de valorização da atividade acadêmica. Ao quantificar o nível de produtividade dos laboratórios e pesquisadores, torna-se, de fato, possível assumir o controle à distância de sua atividade usando-se uma ferramenta especial de medição que avalia, isto é, em sentido estrito, “produz” o valor do trabalho e do pesquisador. O estabelecimento de um “preço fictício” do trabalho de pesquisa, dos próprios pesquisadores e unidades de investigação, é um elemento central na construção da universidade neoliberal.
Essa transformação do conhecimento em valor construído pelos indicadores é acompanhada pela extensão e pelo fortalecimento dos direitos de propriedade sobre o conhecimento, e traduz-se amiúde pela transformação de um bem comum em bem econômico apropriável, pelo qual os alunos devem pagar um preço por vezes muito elevado, que permite, às instituições universitárias que os distribuem, desfrutarem de lucro e às organizações bancárias de se beneficiarem do endividamento de uma jovem clientela. O mercado universitário associa-se a um mercado de publicações científicas, que tende a se tornar o lugar de suprema verificação da atividade dos docentes-pesquisadores mediante a classificação de periódicos e a contagem de publicações e citações.
A racionalidade instrumental propiciada pela linguagem da gestão opera a ocultação progressiva das finalidades substanciais da universidade, transformadas em modos de gestão empresarial, de mensuração de resultados, de estratégias de comunicação, de relação custo/benefício. Não é mais que uma questão de economia de escala, de otimização de meios, de reagrupamento de recursos. Através disso opera-se uma desvalorização, no sentido próprio do termo, do conteúdo do trabalho e, ao mesmo tempo, o fortalecimento do poder das equipes de gestão e dos consultores que as assessoram para os quais as mudanças a serem implementadas são inegociáveis, quaisquer que sejam os efeitos reais desses dispositivos sobre o trabalho e a situação pessoal dos profissionais envolvidos. A própria condução da atividade de pesquisa submete-se aos critérios e métodos de gestão. A avaliação de especialistas acerca dos projetos que respondem a concursos diz respeito tanto às contribuições científicas esperadas como à “governança da pesquisa”, particularmente quanto a seus aspectos financeiros, o que significa que essa avaliação submete-se ao postulado segundo o qual a qualidade de uma pesquisa depende essencialmente da sua “boa governança”.
A perda de autonomia da universidade nunca se mostra melhor do que na transformação, no âmbito de uma disciplina, da hierarquia do valor dos objetos de acordo com o variação dos valores econômicos, sociais ou políticos atribuídos a esses mesmos objetos fora da universidade. Na realidade, são as autoridades políticas que estabelecem os objetivos considerados estratégicos da pesquisa e, portanto, o valor dos objetos como o valor profissional do trabalho do professor-pesquisador. E com seu valor, é toda a atividade do professor-pesquisador que é, de certa forma, controlada remotamente de acordo com mecanismos gerenciais de recrutamento, promoção ou financiamento.
Pela concorrência entre as instituições, mas sobretudo pela diferença crescente entre o número de candidatos à carreira científica e o número de vagas estatutárias em tempo integral, o emprego acadêmico e científico obedece cada vez mais ao modelo de emprego neoliberal. Desde o pedido de financiamento para seu doutorado, o pesquisador está sujeito a uma pressão competitiva que lhe exige um engajamento total e em tempo integral, o que leva a uma cisão subjetiva entre uma vocação, muitas vezes mesmo uma paixão, e condições de trabalho que o obrigam a não fazer “o bom trabalho acadêmico-científico” que deseja fazer (Piret & Girès 2018).
O trabalho acadêmico alinha-se com o tempo do mercado universitário e deve atender às obrigações burocráticas multiplicadas. O de que muitos professores-pesquisadores sofrem é da compressão do tempo imposta pelo mercado universitário e pelo “trabalho invisível” da administração. Este tempo de trabalho acadêmico estende-se constantemente para o tempo da vida pessoal e social. “O uso de si”[2] transforma-se em uma espécie de superexploração das próprias capacidades mentais, numa auto-aceleração que conduz a um trabalho muitas vezes decepcionante, num processo de auto-excitação ligado à organização burocrática do trabalho e ao alinhamento do trabalho acadêmico com o horário comercial.
O questionamento prático do ethos acadêmico produz múltiplas tensões subjetivas geradoras de diversos sofrimentos pessoais até fenômenos depressivos ou de burnout. É subjetivamente caro ter que ser um “competidor permanente” (Musselin 2017: 75). E o peso do trabalho é aumentado por contradições objectivas, por exemplo, as de ter de responder a concursos com taxa de sucesso muito baixa em detrimento de uma atividade de publicação altamente valorizada pelos dispositivos de avaliação.
O tipo ideal da universidade como comum
A vontade de mudar uma situação insuportável, para muitos, é a base de uma reinvenção da universidade do comum. Redefinir a universidade como comum é amplamente incompatível com o domínio das normas neoliberais na sociedade. Só pode ser uma instituição do comum entre outras instituições do comum. O exercício aqui consiste, portanto, em imaginar o que poderia ser uma universidade diferente daquela que hoje se impõe, uma universidade que fosse regida de acordo com o princípio do comum. Pierre Dardot e eu desenvolvemos a ideia de que, das lutas e experiências contemporâneas, emerge um princípio político de dupla face, que se caracteriza tanto pela busca de novas formas democráticas quanto pelo questionamento da lógica proprietária. O que se chama de “comuns” são, portanto, instituições que visam combinar os dois aspectos, o do autogoverno e o da prevalência dos direitos de uso coletivos (Dardot & Laval 2014). É uma modificação, não uma negação do trabalho de Elinor Ostrom sobre os “comuns”, que ela definiu como recursos compartilhados por uma comunidade que é sua produtora, protetora ou garantidora, segundo regras instituídas coletivamente.[3] A equipe de Elinor Ostrom desenvolveu a análise de “comuns do conhecimento”, sejam eles comuns de longa data, como bibliotecas ou certos periódicos, ou novos comuns usando novas tecnologias (enciclopédia wiki ou software livre). Ela não tratou da universidade como um comum, ou seja, como uma instituição regida pelo princípio do comum. E por uma boa razão: os trabalhos sobre os comuns, nos campos sociológico, econômico ou jurídico, não são antecipações do que poderia ser, eles descrevem o que é. Portanto, aqui se trata menos de um objeto que de um novo projeto.
Uma reinvenção
O exercício de elaborar a imagem ideal-típica de uma universidade democrática e respeitosa dos valores acadêmicos pode parecer muito abstrato. No entanto, ele é essencial. Essa “universidade como comum”, ou ainda essa “universidade do comum”, não pode nascer se não for um campo de experiência educacional e de experimentação social, ou melhor: um lugar de invenção institucional. Se novas práticas são necessárias desde agora, elas devem ser orientadas rumo a um modelo a ser inventado. Mas esta invenção é, na realidade, uma reinvenção da ideia de universidade, uma forma de lhe dar uma consistência efetiva no século XXI. Porque o que estamos procurando? Procuramos associar uma universidade democrática a serviço de uma sociedade democrática mas que também obedeça a valores e normas académicas fundamentais, legado de longas lutas pela liberdade de pensamento.
A ideia de uma universidade é antiga. O grande evento do século XIII, com a construção das catedrais, foi a constituição das universidades e em particular das diversas faculdades da Universidade de Paris. Desde 1212 fala-se da Universitas magistrorum et scholarium, dessa união de mestres e estudantes que constitui sua origem e sua base (Cohen 1967:109). No norte da Europa, as universidades são associações voluntárias de professores, enquanto no sul e, particularmente, em Bolonha, as primeiras universidades são associações de estudantes das quais os professores são excluídos.
Universitas é o “todo” (tradução em latim clássico de to pan) que se torna, sob a pena dos cristãos, a criação divina, o mundo, o cosmos, ou ainda todo o gênero humano, toda a raça humana, e, entre os gramáticos, um todo abstrato distinto das partes que o compõem. Como frequentemente ocorre no medioevo, este termo designa qualquer totalidade, concreta ou abstrata, de pessoas ou bens. O termo é frequentemente contraposto a singularitas, que se refere à unidade ou ao indivíduo.
Categoria a um tempo gramatical e lógica, universitas designa no direito um conjunto regido por regras especiais. Universitas designa em linguagem jurídica, corporações em geral, que os primeiros comentadores definiram como uma ”conjunção ou reunião em um único corpo de uma pluralidade de pessoas“ (cit. by Kantorowicz 2000: 861), ou como “uma coletividade cujos membros têm a vontade e a consciência de formar uma só pessoa em sua existência e ação comum” (Quantin 1970: 57). O significado do termo, em seu sentido jurídico, é, portanto, muito amplo: no século XIII, universitas designa um grupo legalmente constituído de pessoas que tem algo em comum, nem que seja a intenção de se reunir para um propósito comum e que goza de reconhecimento oficial (Quantin 1970: 41).
O nascimento das universidades é inseparável do grande movimento associativo e comunitário do século XIII. As universitates então se desenvolvem de múltiplas formas: comunas, corporações de ofícios, guildas etc. A expansão do termo na Itália, França ou Espanha testemunha em particular a aspiração à autonomia dos municípios. Assim, a Universidade, no sentido moderno do termo, longe de constituir uma exceção, era uma corporação entre outras, uma universitas entre outras. No entanto, é a Universidade que acabou por confiscar para seu próprio benefício o termo universitas, a ponto de aparecer, não como uma universitas entre outras de igual nível, mas como a universitas por excelência, como uma corporação excepcional regida pela libertas scholastica, de fato, mais teórica do que real.
Em certos aspectos, a história da universidade como coletividade, comum ou colégio (termos concorrentes na Idade Média), é a história de um fracasso, como o das comunas. É o fracasso de um autogoverno que então se formava e que era bloqueado pelos dois grandes poderes centralizados, a Igreja e o Estado, em luta entre si, mas que também disputavam o controle de todas as universitates, especialmente os locais de estudo . A Universidade permaneceu por muito tempo sob o controle das autoridades religiosas para depois cair sob o controle político do Estado. De instituições religiosas, as universidades, como outras instituições escolares, iniciaram, desde o fim da Idade Média, sua marcha rumo à nacionalização administrativa e política. A história é complexa, pois, sob o efeito do Iluminismo e das necessidades da ciência, as universidades que se tornaram instituições do Estado nacional mantiveram certa distância do poder político ou buscaram, como na França, reconquistar uma certa independência no final do século XIX. Uma independência que permanecerá frágil, incompleta, muitas vezes posta em questão a pretexto de adaptação aos condicionalismos da economia e do emprego, sobretudo no final do século XX.
O que estamos testemunhando é uma nova era de dependência da universidade em relação ao poder econômico, uma dependência liderada e organizada pelo próprio poder político. “A economia do conhecimento” é uma regressão das frágeis conquistas da liberdade acadêmica. Não podendo mais contar com o Estado neoliberal para fazer valer sua autonomia, a universidade deve contar com professores-pesquisadores e alunos para fazê-la ser respeitada. O essencial a lembrar aqui é que, em seus primórdios, a universidade foi definida precisamente como uma comunidade perseguindo um objetivo comum e pondo em comum recursos e habilidades. Como se pode ver, não estamos tão longe quanto se poderia pensar da ideia moderna de comum, desde que, é claro, a ela agreguemos uma tripla dimensão: liberdade absoluta de pesquisa, democracia na organização e universalidade de um serviço público. Por isso, é importante reinventarmos, em novas bases, a communitas studiorum e a universitas scientiarum, mantendo a ideia fundamental de que a universidade é um corpo autônomo formado pela união de pessoas guiadas pela busca do conhecimento.
A liberdade como condição
A universidade do comum é uma instituição cuja vocação específica é produzir e ensinar conhecimento, de acordo com regras estabelecidas e respeitadas por todos e que fazem prevalecer o valor de verdade do conhecimento além de qualquer outra consideração. O primeiro dever da universidade para com a sociedade é propor verdades provisórias, sempre possivelmente questionáveis no debate científico. A universidade como comum rege-se por um princípio de liberdade consistente com sua própria definição.
A universidade reúne estudantes e estudiosos em torno de suas duas funções indissociáveis de investigação e formação, de produção e aquisição de conhecimento. O conhecimento é a unidade alvo de professores-pesquisadores e estudantes (Vico). O estudante deve ser associado o mais cedo possível à dinâmica do conhecimento, ou seja, à prática do questionamento crítico próprio da pesquisa; o que implica que a “pedagogia” seja guiada pela prática do co-questionamento crítico do saber estabelecido. O curso universitário deve ser uma ação coletiva envolvendo estudantes e professores. Em seu relatório “Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim“ (1809), Wilhelm von Humboldt recusa-se a reduzir a universidade a um círculo de estudiosos: para ele, os estudantes fazem parte do corpo acadêmico da mesma forma que os professores.
Humboldt propôs a moderna definição do acadêmico como professor-pesquisador, reunindo em sua pessoa e em sua atividade as duas tarefas que a universitas medieval mantinha cuidadosamente separadas: o desenvolvimento e a produção do saber, outrora confiado às academias, e sua difusão social, antes confiada às universidades propriamente ditas. Esta reforma apoia-se numa forte promoção da ciência e da pesquisa. Porque a particularidade das instituições de educação superior é a de “tratar sempre a ciência como um problema” e, portanto, de “continuar sempre a pesquisar”.
Costuma-se dizer que a universidade deve “estar a serviço da sociedade” ou, ainda, que é um “serviço público de interesse geral”. Entende-se, muitas vezes, como sendo uma função de expertise, em sentido tecnocrático. No entanto, a principal função da universidade em relação à sociedade é de ser um local ativo de reflexividade crítica. Este é o principal serviço que presta à sociedade. Em outros termos, a norma interna que rege o recrutamento e a promoção de acadêmicos é o alcance crítico do conhecimento quanto ao que até então se estabeleceu tanto no corpo dos saberes quanto na sociedade.
Esta dupla função define o caráter especificamente universitário da formação dos estudantes. Se a universidade não pode desinteressar-se das “oportunidades profissionais” dos estudantes, numa sociedade em que o regime assalariado é largamente majoritário, ela não pode renunciar a esse princípio. A dimensão profissionalizante dos estudos deve nutrir-se dos saberes acadêmicos e da reflexividade crítica, de modo que os futuros profissionais que tenham concluído a formação universitária possam integrar a seu ambiente de trabalho e a sua vida social o que ali aprenderam, em particular exercendo seu livre arbítrio como cidadãos esclarecidos. A universidade do comum derruba a proposição utilitarista de que a universidade deve “ abrir”-se ao mundo empresarial. Em uma sociedade democrática, o campo da produção deve ser alimentado integralmente pelas qualidades e capacidades adquiridas pelos estudantes.
A universidade do comum é assim investida de um papel essencial que é a preservação e extensão da atitude crítica diante de todo o tipo de poder, incluindo, dentro dela, o poder corporativista. Esta atitude crítica só pode assentar-se numa ética partilhada, vinculada ao valor de verdade do conhecimento. Segue-se que não apenas a universidade do comum é livre, mas que tanto os professores-pesquisadores quanto os estudantes nela são livres. Para dizer à maneira de Derrida, a universidade como comum é “incondicional“. Isto significa que ela nem sequer está sujeita à condição de ser “útil”, se tal utilidade for definida por poderes externos (Derrida 2001).
Essa liberdade acadêmica incondicional é a condição para o avanço da pesquisa. O ensino universitário é livremente organizado em estreita relação com a pesquisa. A liberdade de organização dos cursos é apenas limitada pelas obrigações pedagógicas de progressão fundamentada da aprendizagem.
Essa liberdade acadêmica pressupõe que os professores-pesquisadores, após uma fase tão curta quanto possível, tenham um status estável e protegido que os torna independentes de qualquer lógica heterônoma. A precarização que permite todas as formas de pressão sobre professores e pesquisadores, e os leva a inibir sua liberdade é contraditória com o princípio do comum. A autonomia da universidade diante dos poderes político-econômicos e a substituição da competição pela cooperação modifica o trabalho universitário, que não é submetido ao tempo do mercado nem mutilado pelo peso excessivo do “trabalho invisível“ da administração. A produção do conhecimento tem como condição a mais completa liberdade no uso do tempo, condição da criatividade. Liberdade acadêmica significa livre uso de si mesmo. O que também significa que as tarefas de gestão são realizadas por pessoal administrativo capaz e em número suficiente.
O bem comum na universidade
O conhecimento é ali considerado como um “bem comum”, ou seja, de acordo com a definição latina de res communis, de “coisa inapropriável”. Não é tratado como um valor econômico; não é mais considerado sob o ângulo exclusivo de sua contribuição para a produção econômica. É instituído na universidade como recurso comum, como bem comum universal. Sua finalidade é o “bem comum dos cidadãos” segundo a definição que lhe dava Vico no século XVII. Não é uma soma de unidades apropriáveis sujeitas a limitações comerciais ou burocráticas. Nenhuma restrição deve impedir, de direito e de fato, o acesso ao saber e a obtenção de novos conhecimentos. O acesso ao saber e a aquisição de conhecimento não se submete a qualquer condição, nem de recursos, nem de nascimento, nem de diplomas. Essa aquisição está sujeita apenas à lógica própria da progressão na ordem das dificuldades de aprendizagem dos saberes.
Segue-se que a maior parte do financiamento para educação e pesquisa é fornecida pela comunidade como um todo, uma vez que a universidade dos comuns nada mais é do que um serviço público democraticamente governado e fruto da união de recursos da comunidade como um todo. Esse financiamento essencialmente permanente e não principalmente contratual é a única maneira de deixar o controle da pesquisa para os pesquisadores. A avaliação do conteúdo e da real contribuição da pesquisa deve ser realizada exclusivamente por pares eleitos pelo colégio de especialistas.
A universidade do comum é financiada por todos, é a casa de todos, é verdadeiramente universal na sua destinação social. A universidade do comum é gratuita. O financiamento provém de uma tributação progressiva tal que os benefícios pessoais em termos de remuneração sirvam à vida da comunidade e contribuam para a igualdade de acesso ao saber. A universidade é uma instituição aberta a todos os públicos, não uma instituição reservada a uma elite privilegiada, nem mesmo a uma única geração. As regras de abertura social da universidade permitem que todos possam adquirir conhecimento, contribuir para produzi-lo e difundi-lo na sociedade. Isso implica, em especial, a abertura de cursos e atividades formativas a trabalhadores da ativa, a aposentados e a todos os indivíduos que assim o desejarem[4]. Os cursos devem, portanto, ser abertos a pessoas de todas as idades, que desejem aprender a qualquer tempo de sua carreira profissional ou de vida, com base apenas na capacidade de seguir de fato o curso, dado o seu nível de conhecimento. A abertura a todos não significa que todos possam frequentar todos os cursos, qualquer que seja seu nível de partida. A única seleção admitida diz respeito ao ingresso em centros e institutos profissionais ou em cursos de alto nível de exigência científica, que pressupõem pré-requisitos acadêmicos especiais. Esta função da universidade é incompatível com o desenvolvimento de um setor de ensino superior ultrasseletivo e com a luta competitiva entre instituições na disputa pelos melhores estudantes.
A igualdade de acesso ao saber pressupõe que a organização dos estudos e os métodos de ensino estejam subordinados ao objetivo da equalização real das condições de aprendizagem, o que pressupõe condições materiais adequadas, acompanhamento pedagógico suficiente e adaptado ao nível dos estudantes, um finanaciamento dos estudos mediante um sistema pertinente de bolsas de estudo que torne inútil o recurso a “pequenos bicos” pelos estudantes oriundos dos meios populares.
O princípio da cooperação
Liberdade não significa isolamento individual. Tanto em termos de pesquisa como de ensino, o princípio orientador da universidade é o do “pôr em comum” ou da cooperação. A pressão competitiva é substituída apenas pela emulação intelectual. Não se pesquisa nem se aprende sozinho. Na pesquisa como no ensino, a progressão é coletiva. Neste último caso, o trabalho conjunto dos estudantes é valorizado e incentivado em todos os níveis.
Todo conhecimento novo é fruto de uma produção coletiva sujeita a regras de acumulação, transmissão, discussão e validação. O saber é necessariamente “aberto”, o que não significa sem regras, a fim de garantir o avanço do conhecimento. Os pesquisadores colocam o seu trabalho à disposição de todos e usam livremente o trabalho dos pares, sem fronteiras e sem reservas de qualquer espécie, de acordo com o “comunismo da ciência“ de que falava Merton, num célebre texto dos anos 1940, que era, a seu ver, a primeira condição para o avanço do saber (Merton 1942). A universidade do comum ajuda a produzir novos “comuns do conhecimento“ mediante a difusão gratuita dos recursos intelectuais depositados em plataformas abertas para cursos, acervos de artigos e conferências, ou em bibliotecas digitais etc.
A universidade como comum é incompatível com a fragmentação de disciplinas e subdisciplinas, lógica de fragmentação que tem sido reforçada pelo desejo de adequar, a todo custo, a formação às oportunidades profissionais. Em uma palavra, ela é incompatível com a “ multiversidade” teorizada por Clark Kerr, que anula a ideia humanista da universidade em favor de uma justaposição de escolas de formação profissional (Kerr 1967).
Deve-se reinventar a ideia da universidade como Universitas scientiarum, a universalidade das ciências, reinstituindo-se os campos disciplinares e os blocos epistêmicos, amplos e abertos, que permitam a troca e a cooperação entre pesquisadores. Esta insistência (no) ou lembrança do que é comum entre os saberes permite introduzir em toda a formação, mesmo na mais especializada, o que corresponde a um espírito científico comum e a uma cultura geral comum.
A democracia institucional
A universidade como instituição é uma comunidade, regida por regras democráticas, na qual professores-pesquisadores, pessoal não docente, estudantes e representantes dos cidadãos formam uma comunidade política.
As unidades de pesquisa e as unidades de ensino regem-se pelo princípio da colegialidade dos professores-pesquisadores. A colegialidade assim instituída permite a discussão aberta, a tomada de decisão coletiva, a nomeação provisória com base na competência científica dos dirigentes por prazo determinado, cujo mandato mantém-se sob controle. Os estudantes, pelo menos os mais avançados em pesquisa, associam-se às discussões e decisões colegiadas.
Os vários órgãos da administração universitária são regidos pelos princípios da representação democrática das várias unidades de ensino e pesquisa (professores-pesquisadores, estudantes, funcionários técnico-administrativos). Os professores-pesquisadores têm ali um lugar central e uma responsabilidade eminente. A equipe gestora (da reitoria) é a emanação dos colégios eleitorais e não pode, de forma alguma, configurar-se como um poder gerencial autônomo, fora do controle da comunidade política universitária. Os representantes dos vários segmentos nos órgãos de administração da universidade mantêm-se sob o controle dos representados, aos quais devem fornecer relatórios periódicos dos seus mandatos provisórios e revogáveis.
São conhecidas as tendências oligárquicas de qualquer democracia representativa. É por isso que as decisões importantes são todas discutidas em assembléias dos colégios/segmentos da comunidade universitária, assim como os relatórios dos mandatos, de modo que os representantes dos diversos colégios são obrigados a seguir as orientações das assembléias. A participação de todos nas assembléias, lugares de autogoverno da instituição, não é apenas incentivada, mas institucionalmente estabelecida como uma obrigação.
Esta comunidade autogerida de professores e estudantes está sujeita aos princípios gerais do ensino público e às leis em vigor, obedecendo em particular às regras igualitárias de distribuição dos fundos públicos. O acesso de todos à universidade é garantido por lei. Para que isso ocorra, representantes de autoridades locais, de trabalhadores, de órgãos administrativos e de empresas fazem-se presentes nos órgãos de gestão da universidade.
No plano internacional, a regra que prevalece não é a competição, mas a cooperação entre pesquisadores e o livre acesso aos recursos e fontes intelectuais e científicos. A livre circulação de pesquisadores entre países é regra e conta com financiamento especial. Esses intercâmbio e cooperação internacionais são imprescindíveis quando os problemas que se põem para a humanidade são, mais do que nunca, de dimensões globais. A solidariedade financeira entre universidades de países ricos e pobres é a regra e deve ser exercida por meio de um fundo universitário global responsável pela equalização dos recursos.
Cada universidade integra-se assim a um comum global do conhecimento, que, no nível institucional, toma a forma de uma federação mundial de universidades, responsável pela organização dessa reunião de recursos e pelo livre intercâmbio de pesquisadores.
Conclusão
A regulação neoliberal do campo do conhecimento só pode prejudicar o “coração“ da profissão, ou seja, os valores coletivos compartilhados que dão aos envolvidos a sensação de que seu trabalho e sua vida têm um sentido que ultrapassa o interesse e bem-estar pessoais. Não há hoje outra possibilidade de escapar da degradação da instituição que a insubordinação das subjetividades universitárias. É disso que podem partir os impulsos e nascer as experiências que permitem inventar uma outra universidade. Não se pode simplesmente esperar por uma transformação geral da sociedade antes de começar a mudá-la. É preciso começar a inscrever na realidade outras formas de produzir conhecimento, outras práticas de ensino, voltadas para outro modelo de universidade, que propus chamar de universidade como comum ou universidade do comum. Mas há outra dimensão sobre a qual se deve refletir. Se a universidade neoliberal está gradualmente se tornando uma realidade global, combatê-la pressupõe que os acadêmicos se organizem também no plano global. A federação mundial de universidades poderia começar a tomar forma se uma verdadeira internacional de professores e pesquisadores se constituísse em torno da ideia de que o conhecimento, mais do que nunca necessário para enfrentar os enormes desafios coletivos do século XXI, é um bem comum mundial que supõe não grandes e belos discursos, mas uma instituição que o faça existir como tal.
Bibliografia
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*Christian Laval é professor de sociologia da Universidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense. Autor de extensa obra, em que se destacam L’Homme économique: Essai sur les racines du néoliberalisme (Gallimard, 2007) e L’ambition sociologique (Gallimard, 2012). Já publicados em português: A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Boitempo, 2016, em coautoria com Pierre Dardot), Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI (Boitempo, 2017, em coautoria com Pierre Dardot), A Escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público (Boitempo, 2019), Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal (Editora Elefante, 2020) e A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo (Editora Elefante; Embaixada da França no Brasil, 2021). Éducation démocratique (Vozes, no prelo).
Nesta tradução respeita-se o sistema de referências da edição original.
A versão portuguesa deste artigo é de Valdemar Sguissardi (Prof. Titular aposentado da UFSCar) – https://vsguissardi.com.br (Nota do tradutor)
[1] De acordo com as recomendações de Hayek em The use of Knowledge in Society (1945).
[2] Por “uso de si” entendo, à maneira dos ergólogos como Ives Schwartz, os usos do tempo, do trabalho intelectual, das relações com os outros, da atenção.
[3] O primeiro trabalho exploratório nessa direção foi realizado por Charlotte Hess e Elinor Ostrom (ed., 2007).
[4] Esta é a norma hoje de certas instituições, inclusive prestigiosas, como o Collège de France, por exemplo.